1. Introdução.
2. Princípio da publicidade notarial
3. Da ata notarial;
4. Da necessidade do pedido de restrição de publicidade e a legitimidade para a decisão
5. Conclusão
1. INTRODUÇÃO:
A função notarial encontra resguardo constitucional no artigo 236, que preconiza que será exercida em caráter privado, por delegação do Poder Público. Trata-se de delegação realizada pelo Estado, conferida ao particular – profissional do direito e dotado de fé pública, que passa a exercer, em nome próprio, atividade naturalmente ligada àquele. (artigo 3º, Lei 8.935/94 – Lei dos Notários e Registradores – LNR) Mesmo havendo a delegação, é o Estado que continua como titular da função.
As finalidades da função notarial e registral, expressamente consignadas em lei, são: “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. (art. 1º, LNR) Ao tabelião de notas compete, com exclusividade, a lavratura de atas notariais (artigo 7º, Lei 8.935/94), como forma de captação da realidade e constituição de prova, dotada de fé pública. As atas notariais se destinam à constatação de fatos e à sua documentação, pelo Tabelião de Notas, podendo a constatação se referir a imagens ou sons existentes em meio eletrônico. (artigo 384, parágrafo único, CPC).
Há determinados fatos, porém, que, por traduzirem grave afronta à dignidade da pessoa humana, podem demandar atuação do Tabelião (e do Poder Judiciário) para restrição da publicidade às partes envolvidas, sobretudo no Brasil na qual já se constatou a existência de um crime sexual por hora na rede mundial de computadores . Indicadores revelam a grandiosidade do problema. Segundo a Safernet, associação civil de direito privado, na qual mais de 15 mil usuários buscaram ajuda no ano de 2017, ocorreram inúmeras práticas abusivas pela internet como a exposição íntima/sexting e a ofensa/ciberbullying, sendo a maioria das vítimas mulheres.
O problema é tão sério que já se encontra em curso na Câmara dos Deputados o projeto de lei (PL 18/2017), denominado “Projeto de Lei Rose Leonel”, que inclui a comunicação no rol de direitos assegurados à mulher pela Lei Maria da Penha, bem como reconhece que a violação da sua intimidade consiste em uma das formas de violência doméstica e familiar; tipifica a exposição pública da intimidade sexual; e altera a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
O presente trabalho tem o escopo de analisar a possibilidade de restrição de publicidade de atas notariais cujo conteúdo afronta gravemente o direito à privacidade e à dignidade do solicitante ou de outros envolvidos.
2. DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NOTARIAL
Conforme previsão legal, a publicidade é vetor axiológico aplicável aos Serviços Extrajudiciais. Nesses termos, deve o Oficial ou o Tabelião fornecer certidões, mediante solicitação, que não precisa ser motivada . A publicidade da função notarial é substrato do princípio da publicidade administrativa, previsto no art. 5º, inc. XXXIII, da Constituição Federal, postulado que estabelece o direito de todos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Assim, em regra, deve o Oficial ou o Tabelião portar-se como um facilitador dessa informação ao usuário do serviço.Todavia, a publicidade, como princípio, não se aplica de forma absoluta, devendo ceder espaço à aplicação de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88), o direito à privacidade (art. 5º, X e LX, da CR/88) ou o interesse social exigir (art. 5º, LX, da CR/88). É a chamada técnica de ponderação.
De acordo com a doutrina, a publicidade divide-se em ativa e passiva , sendo, de regra, a passiva natural ao Tabelionato de Notas, e, de maneira geral, de todos os Serviços Extrajudiciais. A publicidade passiva é aquela latente, cujo conteúdo da documentação repousa nos serviços extrajudiciais à espera da solicitação do interessado, para que venha a lume. De outro lado, a publicidade ativa é a exposição do conteúdo do ato, por atuação pró ativa do responsável pelo serviço notarial. Exemplifiquemos: Se de um lado existem inúmeras escrituras (e documentos que as instruíram) potencialmente aptas a serem revelados por mera solicitação de quem quer que seja (publicidade passiva), há outros atos que devem ser estampados ao público, de maneira voluntária e ex lege – pelo Oficial.
São exemplos de publicidade ativa os editais de casamento (art. 67, inc. I, LRP), a publicidade no procedimento para registro torrens (art. 282, LRP) e no processamento no Ofício de Registro de Imóveis da usucapião extrajudicial (art. 261 –A, § 4º, CPC), dentre outros.
O Tabelião deve guardar sigilo sobre a documentação arquivada e sobre as escrituras lavradas, encampadas pela publicidade passiva, constituindo infração disciplinar a violação desse sigilo (artigo 31, IV, da Lei 8.935/94). Ou seja, muito embora,quando solicitado,seja o fio condutor da informação, deve portar-se com discrição, sem levar ao conhecimento de terceiros fatos que, em razão de sua função, tenha conhecimento. Há vários casos, porém, para os quais o ordenamento jurídico brasileiro determina o sigilo das informações, mitigando-se a publicidade passiva. É o caso de adoção, de legitimação da filiação, de proteção do nome civil pela colaboração em apuração de prática criminosa, nos moldes dos arts. 45, 57, § 7º, e 95 da Lei nº 6.015/73, bem como no art. 6º da Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. O TJMG já determinou até mesmo a alteração de endereço de uma serventia para proteger o sigilo de atos .
Da mesma forma, não se pode esquecer de que a limitação de publicidade atinge os atos judiciais, quando a preservação da privacidade dos envolvidos assim o justifica ,como nos processos judiciais envolvendo “segredo de Justiça” , cujo conteúdo do ato só é revelado às partes, seus respectivos advogados, Defensoria Pública e Ministério Público, nos moldes do artigo 11, CPC. Nesse caso, ficará limitado o dever de fornecimento de certidão de todos os atos do processo (art. 152, V, do CPC). Portanto, existe a restrição de publicidade em diversas situações, sobretudo quando há a necessidade de proteção de direitos constitucionalmente garantidos do indivíduo, ligados à intimidade e à vida privada. Se há a restrição de publicidade para atos judiciais, pelos mesmos motivos deve haver sigilo nos atos extrajudiciais, lavrados em tabelionatos de notas.
Passamos à análise da ata notarial, que pode conter fatos captados pelo Tabelião que sejam constrangedores ao solicitante e aos demais envolvidos. É, por exemplo, o caso de nudes ou de conteúdo criminoso – como os tipos penais de injúria, calúnia e difamação (138, 139 e 140, CP) ou de grave conteúdo sexual de pedofilia, como os crimes previstos no art. 240, do Estatuto da Criança e do Adolescente .
3. DA ATA NOTARIAL
A ata notarial constitui ferramenta jurídica através da qual o Tabelião, utilizando-se dos sentidos humanos, capta a realidade e a traduz documentalmente, com fé pública. Nesse cenário atual, de crescente utilização de aplicativos de celular, a exposição da intimidade das pessoas é patente e se desdobra na ilicitude pelo vazamento de arquivos de sons e imagens – inclusive vocacionados à prática de crimes. Os chamados “nudes” permeiam os referidos aplicativos e, irremediavelmente, caem no conhecimento público sem a autorização da “vítima” . Não somente “nudes” podem e devem ser objeto de restrição de sigilo, há também fatos extremamente graves, como a prática de crimes de cunho sexual com crianças e adolescentes, que podem ser demonstrados via ata notarial. Daí exsurge a necessidade de ser reconhecido o sigilopara as atas notarias cujo conteúdo exponha os requerentes e terceiros a situações vexaminosas, restringindo-se a publicidade aos atores e às pessoas citadas, para lhes possibilitar o acesso à informação que lhes diz respeito e para eventual defesa em Juízo.
Não se pode chancelar, no Estado Democrático de Direito, o descortinamento da vida privada pelo simples argumento da publicidade afeta aos Serviços Extrajudiciais. A salvaguarda da vida privada afasta a publicidade do ato que envolva imagens, sons ou conteúdos constrangedores, sob pena de desvirtuar-se a finalidade da ata notarial, que é a produção da prova documental – dotada de fé pública – que pode ser utilizada para municiar o titular da ação para futura ação judicial. A publicidade da ata notarial, em casos constrangedores, fere a dignidade da pessoa humana e a vida privada. Há casos em que o fornecimento da certidão do ato pode representar novas ilicitudes e conflitos que a atuação extrajudicial deve justamente combater.
Compete a todos resguardar o sigilo dos referidos instrumentos notariais, com fundamento na dignidade da pessoa humana, mas há de ser verificado se a legislação pátria impõe a necessidade de um pedido nesse sentido ou se o Tabelião poderia agir de ofício. Há, ainda, que ser examinado se esse deferimento da restrição de publicidade poderia ser emanado do Tabelião ou se submeteria ao prévio controle judicial.
4. DA NECESSIDADE DO PEDIDO DE RESTRIÇÃO DE PUBLICIDADE E A LEGITIMIDADE PARA A DECISÃO
Vigora no Brasil o princípio da rogação ou instância que, em regra, impede o Tabelião de praticar atos de ofício, devendo existir provocação pelo requerente, ordem judicial ou a pedido do Ministério Público, como regra geral, ex vi do artigo 13, Lei 6.015/73. Logo, o interessado deve requerer a restrição de publicidade no referido ato. Por outro enfoque, há que se considerar que a Lei dos Notários e Registradores, no seu artigo 37, determina a fiscalização dos atos notariais pelo Poder Judiciário, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos. A aludida fiscalização permeia as atribuições e competências dos notários, insertas no art. 6º e as competências exclusivas previstas no art. 7º da citada LNR. Ou seja, a atuação do Tabelião, formalizando juridicamente a ata notarial (art. 7º, III), é objeto de fiscalização pelo Poder Judiciário e, diante da regra de publicidade (passiva) dos atos notariais, a restrição de publicidade caberia ao juiz competente para Registros Públicos. Nesse sentido, tem-se o art. 137 do Provimento 260, CGJ – TJMG/2013.
Assim, a atuação do Tabelião deve seguir o requerimento do interessado para a prática do ato, e para a restrição de publicidade, cabendo, se o Tabelião não determinar o sigilo do ato, que a parte solicite a suscitação de dúvida, nos moldes do artigo 198, LRP e 124 e seguintes do Provimento 260/2013 – CGJ/TJMG. Todavia, para a efetiva proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CF/88) e para a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, inc. X), percebendo a existência de fato atentatório à dignidade da pessoa humana, deve o Tabelião, mesmo que não haja pedido nesse sentido, estabelecer a reserva de publicidade ao requerente ou à pessoa envolvida no fato, como medida de cautela.
Este cuidado é uma exceção ao princípio da rogação ou instância, mas evitar conflitos é intrínseco à função do tabelião, como bem estabelece o art. 143, Código de Normas das Serventias Extrajudiciais do Estado de Minas Gerais, segundo o qualsão atividades inerentes à função notarial: I. avaliar a identidade, capacidade e representação das pessoas, assim como a licitude do ato que pretendem realizar; bem como IV – aconselhar os interessados com imparcialidade, instruindo-os sobre a natureza e as consequências do ato, compreendendo, ainda, a assessoria jurídica prévia para a formalização dos atos e negócios jurídicos. Além disso, como profissional do Direito, cabe ao Tabelião avaliar, de imediato, a necessidade de proteção, sobretudo de crianças e adolescentes envolvidos nesses fatos graves, nosquais há repercussão na seara criminal, segundo previsão no ECA. (artigo 241 e seguintes) O Tabelião não pode ser omisso à franca e real afronta à dignidade da pessoa humana. Ele, Tabelião, não podeaceitar que a ata notarial, ferramenta garantidora de direitos, possa se tornar mola propulsora de novos e intermináveis conflitos.
Não se pode cercear o tabelião, condicionando a sua atuação na proteção da dignidade a um requerimento da parte. O direito à privacidade e o direito à imagem são direitos da personalidade e em razão disso são absolutos, indisponíveis, imprescritíveis e extrapatrimoniais. A restrição à publicidade é dever legal do Tabelião e não mera faculdade, assim, garantindo a inviolabilidade do conteúdo da ata no primeiro momento, deve o Tabelião, de imediato, submeter tal decisão ao Juiz competente, a fim de ser confirmado o sigilo do ato.
5- CONCLUSÃO
O campo de incidência da ata notarial está em crescimento, sobretudo diante dos novos meios de comunicação e da nova dinâmica da atuação criminosa, via web, utilização de aplicativos e redes sociais, dentre outros.A utilização da ata notarial ganha espaço nesse ambiente e, em razão disso, merece tratamento adequado e especializado para que se torne efetivo instrumento de proteção e salvaguarda de direitos. O conteúdo da ata notarial pode revelar fatos graves eviolar direitos constitucionalmente garantidos dos envolvidos, como a privacidade e a imagem. A publicidade (passiva) registral deve ser afastada para preservar os direitos da personalidade.
A parte interessada deve requerer, conjuntamente com a elaboração da ata notarial, a restrição de publicidade, para resguardar o seu direito à imagem e à intimidade. Se a parte requerer o sigilo do ato e seu pedido não for acatado pelo Tabelião, pode ser utilizado o procedimento de dúvida, previsto na legislação específica.
Mesmo que não tenha sido solicitada a restrição da publicidade, verificando o Tabelião a existência de crimes e a presença de grave exposição da intimidade, da vida privada e, sobretudo a ofensa à dignidade da pessoa humana, deve, como operador do Direito e como medida de cautela, aplicar, de imediato, o sigilo ao ato. Assim, somente as partes envolvidas, o Poder Judiciário e o Ministério Público poderão solicitar certidão. O tabelião deve, também, submeter o caso à análise do Juiz competente.
A publicidade é princípio que se aplica para atos judiciais e também para atos judiciais, não se justificando que exista “segredo de justiça” para atos judiciais e não se aplique o mesmo “segredo de justiça” para atos extrajudiciais, principalmente considerando a atual tendência à desjudicialização. Há situações que exigem a restrição à publicidade para que seja protegida a dignidade da pessoa humana, fundamento maior do Estado Democrático de Direito.
* Daniel Rubens Valério de Barros é graduado pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2005), pós graduando em Direito Processual Civil. Foi professor substituto da Universidade Federal de São João del Rei/MG. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Notas de Desterro do Melo/MG, Comarca de Barbacena /MG, desde 31 janeiro 2014.
** Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É professora e coordenadora da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – Centro de Direito e Negócios e autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas. É autora dos livros “Função Notarial e de Registro” e “Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil”. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.
Artigo de Daniel Rubens Valério de Barros e Letícia Franco Maculan Assumpção